sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

O Aprendiz de Feiticeiro na Assembleia da República




Talvez se lembrem do início daquele poema de Goethe:
Então, por fim, o velho mestre feiticeiro
Saiu de casa!
E agora sou eu quem manda
Nos fantasmas dele.
As suas palavras e gestos
Guardei na memória, e também as práticas,
E com a força da minha mente
Faço milagres também.

Resumindo o poema, o aprendiz de feiticeiro aproveita a saída do velho feiticeiro para ordenar a uma velha vassoura que, usando um balde, lhe encha a banheira com água do rio que ali passa perto. Mas o aprendiz esqueceu-se da palavra-passe que poderia quebrar o feitiço, e em breve cem rios se despejam sobre ele, a água escorrendo pelas portas da casa. Embora parta a vassoura em duas com um machado, as duas partes da vassoura continuam enfeitiçadas, enchendo a casa com um mar de água. Finalmente, chamado o velho mestre feiticeiro, este ordena à vassoura que vá para o seu canto:
Pois que os fantasmas
Só os chama, para os seus fins,
O velho mestre.

Em 1940, o magistral filme de animação Fantasia, da Walt Disney Pictures, incluía uma ilustração do poema sinfónico L’aprendi sorcier, de Paul Dukas, baseado naquele poema de Goethe: Mickey Mouse, aprendiz de feiticeiro, apodera-se do chapéu mágico do mestre e dá vida a uma vassoura que depois não consegue controlar.

Vem isto a propósito do feitiço lançado sobre os deputados da Assembleia da República. No vórtice da internet, eles acedem aos seus computadores e marcam presença nas sessões, votam leis, levados numa enxurrada virtual que parece inevitável.
Enquanto noutros parlamentos a marcação de presenças e a votação das leis é separada do trabalho virtual dos deputados, na Assembleia da República a sua responsabilização está ligada à manipulação de equipamentos que verdadeiramente não controlam. Um acesso transparente às bases de dados das presenças dos deputados, bases de dados que eles próprios alimentam, às bases de dados das votações, que também eles próprios alimentam, bases de dados que são da República, seria a password que permitiria aos deputados quebrar o feitiço imaterial em que vivem. Essas bases de dados devem estar disponíveis aos cidadãos. E esses dados, públicos, permitiriam que os próprios deputados pudessem observar livremente o seu próprio labor, saber os limites materiais onde se movimentam, as fronteiras do seu mandato.
Quando se aceita que se desmaterializem coisas tão pessoais como a presença numa reunião ou tão importantes como a votação de uma lei, há um feitiço tecnológico que nos está a toldar a importância das coisas. Há tarefas que têm de estar materialmente ligadas aos seus intervenientes. O computador é uma ferramenta que nos ajuda no labor diário, não é um “irmão grande” a que nos temos de submeter. E, se os registos da atividade não são imediatamente visíveis e legíveis, por todos, então algo está fora do nosso controlo.
Este feitiço parece abranger outras áreas “imateriais”. Por exemplo, a sequência de operações, ao computador, que permite aos deputados trabalhar na Assembleia da República. Todas as funcionalidades que ajudam ao trabalho são vantajosas, mas onde está explicado esse leque de funcionalidades informáticas, fornecidas aos deputados, e que se traduzem em resultados materiais como a presença em reuniões, a aprovação de leis, as remunerações derivadas da morada de trabalho? (E existe uma morada de trabalho?) Onde está o fluxo desta informação? E é explicada aos deputados a consequência material da sua morada, provavelmente inserida ao computador?
Toda esta panóplia virtual subjacente à atividade dos deputados tem de estar imediatamente visível, também para escrutínio e visibilidade dos seus intervenientes. Seja através da visibilidade imediata das ações, de uma forma legível (quadros das votações, das presenças, legíveis), seja através de uma fácil apresentação desses dados a todos.

Só esta transparência evitará que se tenha de chamar o velho mestre feiticeiro.

NOTA: Como diriam os Rádio Macau, “Já não há nada de novo aqui, debaixo do sol”. Pois não é que encontrei já um plágio disto, de 2016?

Carlos Galrão
28.dez.2018