O excelente espectáculo de abertura levou a um dos palcos do S. Jorge José Mário Branco e Camané, acompanhados por José Peixoto, Carlos Bica e Filipe Raposo.
Apresentam-se de seguida algumas fotografias (de má qualidade) da autoria deste blogue; fotos "a sério" podem ser vistas em http://www.flickr.com/photos/ponto-alternativo/sets/72157626850719075/show/.
Reproduz-se de seguida um retrato fiel do espectáculo, da autoria de António M. Silva, extraído em http://pontoalternativo.com/reportagem/2011/musica-de-palavras-jose-mario-branco-no-festival-silencio:
Celebrar o Silêncio com a Palavra, pode parecer contraditório, paradoxal até. Mas precisamos de muitas palavras, ditas, escritas, contadas e recontadas, gastas até à exaustão para sabermos dar valor ao Silêncio. Precisamos de palavras agora apenas cunhadas e impressas, já raramente ouvidas por vozes materiais para nos apercebermos que muito do que foi escrito e dito há muito tempo, é agora apenas e só Silêncio. Reavivar a palavra escrita, fazer dela canção e vida, torná-la propósito, era uma tarefa árdua que podia apenas recair em alguém que sempre andou de braço e espírito ligado tanto com a palavra escrita, como a palavra dactilografada.
Cantar poetas, os grandes poetas como Luís de Camões, Fernando Pessoa ou Sophia de Mello Breyner pode ser uma tarefa hercúlea, atrevo-me até a dizer solene. Por isso caiu bem a entrada feita a ritmo de pêndulo, lenta. Talvez porque, afinal, o caminho faz-se caminhando. Comandado pelo contrabaixo enorme de Carlos Bica, ritmado pelo piano de Filipe Raposo e acompanhado pela guitarra de José Peixoto, José Mário Branco declamava mais do que cantava e dava uma atmosfera densa à sala, cheia que nem um ovo. Talvez por esperarem uma apresentação mais leve, sentia-se o pulsar conjunto da sala, uma estranheza vívida e clara de quem esperava um poeta romântico e não um poeta negro. O primeiro passo – e o mais grave – estava dado.
A partir daí, as coisas mudaram e pareceram mais fáceis. Bom, pelo menos para a generalidade do público, que parecia lidar melhor com as evocações que permitiam arranjos mais leves e até coloridos. José Mário Branco, esse venerável declamador, permanecia como encarnação da antítese total deste festival. As décadas de experiência a debitar e a escrever palavras como ninguém, dão-lhe margem para subir a um palco, beber os aplausos revigorantes – que chegavam de várias gerações ali presentes – e atirar-se de cabeça a mais um tema.
Elegantemente acompanhado por um trio de luxo – impõe-se uma vénia a Carlos Bica, José Peixoto e Filipe Raposo –, era já visível que a aposta estava ganha. Podia não ter corrido tão bem assim; afinal, Fernando Pessoa morreu há já 90 anos e tentar reflectir com tremenda distância temporal a alma de um desconhecido conhecido apenas pelas suas palavras, podia ser difícil. Não foi. Tanto não foi que Zé Mário se atreveu a atirar ao público um ‘Mudam-se os tempos, Mudam-se as vontades’ tocado em tons de fuga desarmante. Por entre ilustres poetas (e fingidores), que estão agora calados, este atrevimento sabe como, se me permitem, uma manobra de ousadia que parece dizer «Então e eu também não sou poeta, pá?» e que, admitamos, lhe fica bem.
«Obrigado», foi o máximo que se ouviu do cantor. A humildade – timidez, ou pressa, mas preferimos pensar que foi humildade -, não o deixou dizer muito mais que estas palavras de agradecimento. Por isso não foi de estranhar a sua saída rápida de palco, discreta e pelo breu, de forma a dar lugar a Camané.
Goste-se ou não se goste, o lisboeta carrega com todo o mérito o epíteto de melhor fadista português da sua geração. A voz grave, aveludada e descontraída de Camané conquistou o São Jorge de imediato, rendido à apresentação deste género só nosso – e que, diga-se, está mais que habituado a cantar outros poetas. Escolheu bem, Camané, todos os poemas que cantou. Fê-lo com brio, dedicação e sentimento e mereceu os fortes aplausos que recebeu enquanto esteve sozinho em palco.
«É um intérprete único, soberbo e canta como ninguém», viria a dizer José Mário Branco, antes de atirar com um «é um prazer estar em palco com ele. Obrigado». Findos os extensos aplausos, ‘Inquietação’ irrompia pela Sala 1 do São Jorge não só com a voz do seu autor de sempre, mas também com os tiques de fadista de Camané. Um dueto que foi tremido, talvez pelo desconforto do fadista, mas que nos deixava a desejar outra oportunidade. E ela veio: o Canto I dos Lusíadas, de Luís Vaz de Camões, poeta e obra-mor de Portugal, descontruídos minuciosamente e reconstruídos sob a égide do hip-hop debitado a todo o vapor por José Mário Branco, com um refrão que respirava funk e rockabilly por todos os poros. Esta quase heresia de transformar as palavras desse poeta herói em exercício musical vai perdurar na memória. O resultado era o esperado: aplausos e mais aplausos, vindos de uma sala totalmente em pé e a emanar calor.
Mais, só depois de uma curta pausa e para encerrar o concerto de forma definitiva. Precedido de uma curta projecção, o encore haveria de consistir em mais três exercícios musicais e em extensos agradecimentos de José Mário Branco, que foram dos músicos ao engenheiro de som. Para levar para casa, de tão intenso que foi, fica o primeiro tema. Lúgubre, negro, desconfortável, o arranjo criado por três dos músicos mais criativos que aquela sala já viu, soava à marcha industrial dos Current 93. E podíamos cair na tentação de dizer que José Mário Branco parecia David Tibet, mas não. José Mário Branco, depois de ter sido tanta gente, tantos fingidores, foi apenas e só igual a si mesmo.
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