Talvez se lembrem do
início daquele poema de Goethe:
Então, por
fim, o velho mestre feiticeiro
Saiu de casa!
E agora sou
eu quem manda
Nos fantasmas
dele.
As suas
palavras e gestos
Guardei na
memória, e também as práticas,
E com a força
da minha mente
Faço milagres
também.
Resumindo o poema, o
aprendiz de feiticeiro aproveita a saída do velho feiticeiro para ordenar a uma
velha vassoura que, usando um balde, lhe encha a banheira com água do rio que
ali passa perto. Mas o aprendiz esqueceu-se da palavra-passe que poderia
quebrar o feitiço, e em breve cem rios se despejam sobre ele, a água escorrendo
pelas portas da casa. Embora parta a vassoura em duas com um machado, as duas
partes da vassoura continuam enfeitiçadas, enchendo a casa com um mar de água.
Finalmente, chamado o velho mestre feiticeiro, este ordena à vassoura que vá
para o seu canto:
Pois que os
fantasmas
Só os chama,
para os seus fins,
O velho
mestre.
Em 1940, o magistral
filme de animação Fantasia, da Walt
Disney Pictures, incluía uma ilustração
do poema sinfónico L’aprendi sorcier,
de Paul Dukas, baseado naquele poema de Goethe: Mickey Mouse, aprendiz de feiticeiro,
apodera-se do chapéu mágico do mestre e dá vida a uma vassoura que depois não
consegue controlar.
Vem isto a propósito
do feitiço lançado sobre os deputados da Assembleia da República. No vórtice da
internet, eles acedem aos seus computadores e marcam presença nas sessões,
votam leis, levados numa enxurrada virtual que parece inevitável.
Enquanto noutros
parlamentos a marcação de presenças e a votação das leis é separada do trabalho
virtual dos deputados, na Assembleia da República a sua responsabilização está
ligada à manipulação de equipamentos que verdadeiramente não controlam. Um
acesso transparente às bases de dados das presenças dos deputados, bases de
dados que eles próprios alimentam, às bases de dados das votações, que também
eles próprios alimentam, bases de dados que são da República, seria a password que permitiria aos deputados
quebrar o feitiço imaterial em que vivem. Essas bases de dados devem estar
disponíveis aos cidadãos. E esses dados, públicos, permitiriam que os próprios
deputados pudessem observar livremente o seu próprio labor, saber os limites
materiais onde se movimentam, as fronteiras do seu mandato.
Quando se aceita que
se desmaterializem coisas tão pessoais como a presença numa reunião ou tão
importantes como a votação de uma lei, há um feitiço tecnológico que nos está a
toldar a importância das coisas. Há tarefas que têm de estar materialmente ligadas
aos seus intervenientes. O computador é uma ferramenta que nos ajuda no labor
diário, não é um “irmão grande” a que nos temos de submeter. E, se os registos
da atividade não são imediatamente visíveis e legíveis, por todos, então algo
está fora do nosso controlo.
Este feitiço parece
abranger outras áreas “imateriais”. Por exemplo, a sequência de operações, ao
computador, que permite aos deputados trabalhar na Assembleia da República.
Todas as funcionalidades que ajudam ao trabalho são vantajosas, mas onde está
explicado esse leque de funcionalidades informáticas, fornecidas aos deputados,
e que se traduzem em resultados materiais como a presença em reuniões, a
aprovação de leis, as remunerações derivadas da morada de trabalho? (E existe
uma morada de trabalho?) Onde está o fluxo desta informação? E é explicada aos
deputados a consequência material da sua morada, provavelmente inserida ao
computador?
Toda esta panóplia
virtual subjacente à atividade dos deputados tem de estar imediatamente
visível, também para escrutínio e visibilidade dos seus intervenientes. Seja
através da visibilidade imediata das ações, de uma forma legível (quadros das
votações, das presenças, legíveis), seja através de uma fácil apresentação
desses dados a todos.
Só esta
transparência evitará que se tenha de chamar o velho mestre feiticeiro.
NOTA: Como diriam os Rádio Macau, “Já não há nada de novo aqui, debaixo do sol”. Pois não é que
encontrei já um plágio
disto, de 2016?
Carlos Galrão
28.dez.2018
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