terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

José Afonso. Memórias pessoais

As minhas primeiras memórias de José Afonso serão do fim da infância, início da adolescência.

No final da década de 60 dava-se a projecção nacional das canções de José Afonso – “Cantares do Andarilho” é de 1968. Desde sempre grande ouvinte de rádio, não me terá escapado aí (apesar da censura) as suas canções. As noites de estudo, sempre acompanhado da rádio, dos programas da Renascença (“Página Um”, p. ex.) ou da Rádio Clube Português, terão sido grande contributo.

Também um ou outro jornal ou revista que o meu pai levava para casa deram os seus contributos – a “R&T” (“Rádio e Televisão”) era uma das escolhidas. Tenho ainda alguns dos seus números da década de 70, entre os quais um que guardei religiosamente com uma entrevista do Zeca e a sua fotografia na capa – o n.º 833, de 28 de Outubro de 1972. Essa capa tem-me acompanhado nas paredes das casas em que vivi, neste momento está numa das paredes do meu quarto.



Durante a adolescência, o contacto com outros jovens, em especial os de maior idade e os universitários, aprofunda e consuma essa admiração pelo José Afonso.

Duas ou três memórias desse período e das canções do Zeca que nos marcavam:
Em Sintra fizemos espeleologia, um grupo de jovens unidos à volta de uma actividade científica, mas da qual retirávamos essencialmente a discussão e a troca de ideias – não esquecer que estávamos na ditadura mais “bronca” do Ocidente à época, mais de duas pessoas juntas era uma manifestação, e então se fossem jovens, ai, ai. Pois, no interior das grutas a canção de eleição era o “Chamaram-me Cigano” (1968) -“Entrei numa gruta/Matei um tritão/Mas tive/O diabo na mão/”.

Nos acampamentos (selvagens) que fazíamos à volta da exploração de grutas, as canções do Zeca faziam parte do “reportório”; recordo-me de uns dias em Salir do Porto, um grupo grande de jovens em fila, por entre as dunas, cantando “A Formiga no Carreiro” (1973) – “A formiga no carreiro/Vinha em sentido diferente/Caiu à rua/No meio de toda a gente/”.

(Muito mais tarde, em 1999, num estádio de Gotemburgo, na Suécia, cheio de pessoas de várias nações, as lágrimas vieram-me aos olhos quando essa canção foi cantada e coreografada pelo grupo de ginástica acrobática de Mem Martins de que o meu filho fazia parte.)


Outra recordação dos acampamentos, que em certa altura já fazíamos só para estarmos juntos, espeleólogos ou não: durante algum tempo, meses seguidos, criámos uma rotina de acampamentos selvagens nas praias Grande e da Adraga; encontrávamo-nos às 6.ªs feiras às 24H00 no velho Hóquei Clube de Sintra (não aquela coisa de “plástico” que usurpou o nome) e rumávamos serra fora, acompanhados pela canção “Canto Moço” (1970) – “Somos filhos da madrugada/Pelas praias do mar nos vamos/À procura de quem nos traga/Verde oliva de flor no ramo/…. /Lá do cimo duma montanha/Acendemos uma fogueira/Para não se apagar a chama/Que dá vida na noite inteira/”. Claro que às vezes adulterávamos a letra… (“Somos filhos da mãe…/À procura de…”); temos a certeza que o Zeca não se importaria.

Justiça seja feita a outros cantores/autores, nomeadamente ao Zé Mário Branco, do qual não falhava pelo menos “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”; geralmente o acompanhamento musical era do João Magalhães, da Portela.


Depois veio a revolução. E aí a história é mais conhecida e “comum”, a música do Zeca e a sua personalidade interventiva estiveram sempre presentes. Algumas vezes o sectarismo imperava e o facto de José Afonso alinhar ou não por esta ou aquela causa, por parecer estar mais perto ou mais longe da “linha política” que advogávamos, motivava menos atenção ao Zeca.

Mas rapidamente nos reconciliávamos. A sua personalidade vincada, independente, visionária e lúcida, vencia os sectarismos partidários comuns da altura e a coerência da sua vida e obra prevaleciam.

Já noutro tempo, muito após o fim do “PREC”, e no meio de controvérsia nas hostes das esquerdas, não pudemos deixar de admirar o seu apoio à candidatura de Maria de Lurdes Pintasilgo à Presidência da República (1986). Faltava pouco para nos deixar, mas mesmo assim quis afirmar publicamente a sua coerência com os ideais que advogou durante todo a sua vida.

Outra recordação, essa logo após o fim do PREC: uma das raras vezes em que estive muito próximo, nos vários sentidos da palavra, de José Afonso, foi numa sessão de apoio à luta do povo do Alviela. Essa foi a primeira grande causa ambiental em Portugal, vinha de antes do 25 de Abril e conheceu uma assinalável projecção em 1975-1976.

Essa sessão, ocorrida em 1976 em Pernes, foi filmada por uma equipa de cinema amador da qual fazia parte (“Germinal”, da Cooperativa Cultural Grupo de Teatro de Mem Martins) e o Zeca aí foi cantar e animar. Na imagem de baixo, ao centro, pode reconhecer-se (com algum esforço), o António Marques e o Vítor Silva; faltarei eu e o Joaquim Vieira.


Em Dezembro de 1987, pouco tempo após o seu desaparecimento, quisemos homenageá-lo, à nossa modesta medida, claro. Numa publicação que vínhamos elaborando desde os anos 70, mas que só nessa altura conseguimos reunir condições para editar – um roteiro de passeios pedestres na Serra de Sintra –, abrimo-lo com um excerto do poema e canção “Cantares do Andarilho” – “Andei à giesta/Ao lírio maninho/Na Bouça da Fresta/No Casal Velido/”.


Da mesma forma, em 1999 quisemos voltar a homenageá-lo noutra publicação sobre passeios pedestres no concelho de Grândola, e aí referimos a história da canção senha da revolução, nascida e com o nome dessa mesma bendita terra.


E a última recordação do Zeca é mesmo a do seu funeral. A sua morte era anunciada, mas não deixou de ser um choque o seu anúncio.




Decidi desde logo prestar a José Afonso a nossa última homenagem comparecendo no seu funeral no dia seguinte; telefonei para vários amigos nessa noite combinando a ida a Setúbal e lembro-me de ter ficado entre o surpreso e o danado por muitos dos “grandes antifascistas de longa data”, por muitos dos “militantes de primeira água” terem “impossibilidades”. Mas fomos, o Carlos a Graça e eu.

Uma pequena sequência de imagens que quem esteve presente jamais esquecerá: uma tarde cinzenta, muito cinzenta… A avenida principal de Setúbal inundada por um mar de gente, de amigos, conhecidos ou anónimos, de povo. A urna coberta por um simples pano vermelho, transportada pelos seus amigos e companheiros de sempre – o Zé Mário Branco, o Sérgio Godinho, o Fanhais, o Luís Cília, o Júlio Pereira. E um silêncio muito grande, de uma enorme dignidade, cortado apenas pela “Grândola” tocada pela banda da Vila Morena.




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2 comentários:

  1. Pois, Vítor Reis, o Zeca Afonso foi mesmo um irmão mais velho que nos indicou o norte nesta travessia. Creio que o meu primeiro "contacto" com o Zeca foi em 1963, na Praia do Macúti, na Beira, em Moçambique, onde um amigo meu, o João de Deus Quintela, tentava dedilhar numa viola O Menino d'Oiro que estava num EP que o pai lhe comprara. Aquele som nunca me saiu dos ouvidos. Até hoje...

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  2. muito agradecia me fosse enviado por mail ou ctt (despesas minhas, claro) cópia das páginas e capa da revista rádio & televisão com o José Afonso.
    joaoduarte2727@sapo.pt

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